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o que eu aprendi sobre apropriação cultural


“Ah mas quem é você mulher branca classe média pra falar em apropriação cultural?!”

Calma, migas. Eu não vim cagar regra sobre o que é ou deixa de ser apropriação cultural. Eu só vim compartilhar um pouco do que eu aprendi sobre o assunto, depois de abrir uma discussão bem saudável em um post no meu Instagram e Facebook. Até então, o que eu tinha lido e ouvido das pessoas sobre isso era bem superficial, algo tipo “é da minha cultura e você não pode usar”. Mas não é isso, o buraco é bem mais embaixo. Mal comecei a escrever o post e já sei que ele vai ficar enorme e talvez cansativo. Mas eu te convido a vir comigo, baixar a guarda, e tentar absorver um pouco (bem pouco) do muito que é esse assunto.

turbante e apropriação culturalFoto: Victor Jucá

Fui passar uns dias no Festival de Inverno de Garanhuns, e em um dos dias eu resolvi sair de turbante. Gosto de usar, já usei várias vezes em Recife, acho lindo e, de quebra, aquece minhas orelhas no frio de lá. Recebi alguns elogios de como estava bonita a amarração que eu fiz, recebi uma crítica velada de uma amiga perguntando se eu tinha virado negra empoderada pra estar usando o turbante, mas o que mais me impressionou foi um grupo de mulheres negras que passaram e gritaram algumas coisas pra mim. Eram coisas tipo “esse nó na cabeça é algo muito mais importante do que você imagina” e alguns outros comentários que eu mal ouvi mas que sei que foram proferidos de forma agressiva. Eu confesso que fiquei bem triste com isso. Mas sei que por trás desse tapa que eu levei, haviam argumentos que eu não poderia alcançar sozinha. Por isso, postei essa foto pedindo a opinião das pessoas sobre o assunto e recebi os mais diversos feedbacks. Vou tentar organizar aqui a linha de pensamento pra gente começar.

Primeiro, eu sei que o lugar de fala é das mulheres negras e que a gente deve ouvir e absorver as informações. Eu acredito que todos podemos expressar nossas ideias e opiniões sobre isso, pois só crescemos debatendo, mas o que não podemos é julgar ou pormenorizar o que for dito por elas sobre este assunto.

Aprendi que não é sobre indivíduos, é sobre sociedade. Não podemos individualizar a discussão. Então não vamos aqui falar de casos isolados e nem vir com argumentos de “mas eu não sou assim…” ou “mas comigo é diferente…”. Não é sobre você, não é sobre mim, é sobre a sociedade na qual estamos inseridos. E, como todo caso, vão existir excessões. Mas aqui vamos falar do geral que é o que importa.

Aprendi que não é só sobre cultura, mas sim sobre a relação de oprimido e opressor. Ou seja, brancos são estruturalmente opressores, e negros são oprimidos. Não interessa se você é uma pessoa branca e diz que não é racista. Só por ser branca você está montada em um castelo de privilégios, quer você queira ou não. É como a relação de homens opressores e mulheres oprimidas. Não interessa se o homem é gay, militante LGBT, defensor de todas as causas feministas. Ele é homem e a sociedade aceita mais ele do que aceita as mulheres. Então a relação aqui é essa. Não vamos levantar a guarda e dizer “mas eu não sou opressora” porque, como disse acima, não é sobre você. É sobre a sociedade.

Aprendi que não é uma via de mão dupla. Não é apenas o trânsito de uma cultura pra outra. Isso pode ser uma troca. No entanto, exatamente por ser uma relação de privilégio envolvendo raça, classe ou religiosidade, que o uso de determinados símbolos por uma cultura dominante pode promover o esvaziamento dele para a sua cultura de origem. Ou seja, quando brancos usam símbolos afro, esses símbolos vão perdendo o seu sentido e o seu uso vai sendo deturpado. Quando um negro usa um símbolo de branco, não será esse seu uso que vai mudar o significado do símbolo. Exatamente porque o branco é dominante e tem esse poder de promover e alterar o sentido das coisas.

Aprendi que não é sobre quem inventou o turbante, quem usa primeiro, que cultura é “dona” de tal acessório. Então, não adianta vir com aula de história falando de onde surgiu o uso do turbante e o significado dele em cada sociedade. Estamos no Brasil e aqui a nossa cultura é negra, não é árabe, sabe? Se você é branco e é do candomblé, massa. Se você é branco e de família árabe, tudo bem. Mas você é minoria e aqui voltamos á pra cima: não é sobre indivíduos, é sobre sociedade.

Aprendi que não é sobre liberdade de usar/ fazer/ falar o que quiser. E também não é sobre proibir. É muito fácil falar que somos livres para fazer o que queremos quando, na verdade, a liberdade do outro pode nos oprimir. Os homens são livres pra falar o que quiserem para as mulheres? Mulheres são livres para falar o que quiserem para gays ou trans? Podemos sim falar o que quisermos, mas isso tem um peso e um preço. Então, aprendi que aqui é sobre fazer escolhas e sobre bom senso. Ninguém vai te proibir de nada, mas você é responsável pelos seus atos.

Aprendi que também é sobre empatia. É sobre tentar se colocar no lugar do outro, apesar de que nós privilegiados nunca vamos saber a dor e a luta de quem é oprimido, mas podemos tentar imaginar os seus incômodos e pensar o que podemos fazer para evitar ou minimizar essa dor. Essa relação começou a fazer muito mais sentido pra mim. Pensar no uso do turbante pela ótica da sororidade.

Aprendi que não é sobre a intenção de machucar. Quem pisa no pé do outro sem querer também precisa pedir desculpas, né? Afinal, você não quis, mas machucou a outra pessoa. E essa pessoa pode te desculpar, mas a dor dela não vai passar por isso. Então, mesmo que você não tenha a intensão de machucar, você vai terminar fazendo isso.

Aprendi que a sociedade gosta dos ícones negros, mas não gosta dos negros. Quando eu li isso me caiu um peso enorme nas costas. Porque estamos falando de símbolos de resistência e de luta que a sociedade ainda não aceita. Aceita em mim, que sou branca. Mas não aceita na preta, que continua sendo xingada na rua.

Aprendi que, na verdade, eu não fui xingada pelas mulheres negras que gritaram pra mim em Garanhuns. Elas não estavam falando comigo enquanto indivíduo, estavam gritando por uma sociedade branca que as oprime e que esvazia o sentido dos seus símbolos. E quando lembro da máxima “não podemos confundir a reação do oprimido com a violência do opressor“, tudo faz sentido pra mim.

Aprendi que, mesmo que eu defenda que temos uma sociedade para educar nas questões raciais, de gênero, de classe, e que só se educa com diálogo e com carinho, não foi assim que a sociedade foi construída. Sempre digo que na gritaria ninguém se entende, e tento com todas as minhas forças estabelecer diálogos sérios e sóbrios nas questões que envolvem machismo e feminismo, sem gritar para responder uma agressão. Mas diante de anos e séculos de opressão, não posso julgar a atitude de quem agora pode esbravejar para que a sociedade enxergue e respeite sua classe.

Aprendi que eu não preciso concordar com todos os argumentos que eu aprendi, mas também não posso julgar. Não é meu lugar de fala e não sou eu que vou tachar de “extremismo” ou dizer que é uma reação exagerada. Um homem não pode dizer que feminismo é extremo demais, então também não posso dizer isso das mulheres negras. Não tenho como me colocar no lugar do oprimido.

Aprendi que apesar de ser sobre sociedade e não sobre indivíduos, não é algo generalizado. Não são todas as mulheres negras que se incomodam com o uso do turbante e de outros símbolos por mulheres brancas, e que mesmo que se incomodem, muitas vezes não expressam isso. A minha foto do perfil do Facebook sou eu de turbante, e muitas as mulheres que comentaram que eu estava linda, que tinha arrasado e tudo mais, quando eu questionei sobre o uso do turbante tempos depois se colocaram contra. A maioria das mulheres negras que eu já tinha conversado antes de abrir o questionamento disseram não se importar, inclusive, são elas que trançam os cabelos das brancas, que ensinam as amarrações de turbante e pulverizam a utilização de outros símbolos pela sociedade.

Aprendi que a indústria da moda é muito mais cruel do que se pode imaginar. E a crueldade não está só na objetificação dos corpos, na imposição de um padrão de beleza quase inalcançável, mas também no esvaziamento do sentido de símbolos de luta e resistência, como turbantes, estampas afro e tantas coisas que a sociedade nunca aceitou em pretos e agora aceita em brancos.

Aprendi que não podemos julgar a ignorância social das pessoas. Muita gente não está por dentro dos debates sobre feminismo ou apropriação cultural ou outras lutas, sabe? Não podemos crer que, porque nós somos privilegiadas e temos acesso à informação, outras pessoas também tenham. Não podemos esperar que qualquer pessoa que sai na rua sabe exatamente que o que está vestindo ou falando tem um significado muito diferente para outras pessoas.

Aprendi que não será o fato de Anna Terra, indivíduo, mulher branca privilegiada de classe média, usar ou não usar o turbante que vai fazer diferença para a sociedade. Mas que, ao usar, eu não tenho como carregar uma placa dizendo “manas negras, eu entendo a luta de vocês e não estou usando isso para agredir, mas porque eu valorizo e compartilho dos seus ideais“. E que antes eu preciso pesar se a minha vontade de usar vale mais que a dor que eu posso causar em uma mulher negra militante.

Aprendi que, apesar de eu ter aprendido tanto, ainda não consegui formar uma opinião muito concreta sobre isso. Mas que consegui reunir muita informação válida sobre o assunto e que meus atos agora serão muito mais esclarecidos e pensados.

Aprendi também que tenho amigxs maravilhxs e muito pacientes para compartilhar suas ideias e explicar direitinho seus argumentos. Muito obrigada! <3

Aprendi muito mais ainda vendo esse vídeo, que convido vocês a assistir e refletir sobre.

Além disso, vou linkar aqui algumas outras referências bem interessantes sobre o assunto.

Canal Afro e Afins de Nátaly Neri.

Texto Apropriação cultural é um problema do sistema, não de indivíduos” da revista AzMina.

E, como fiz nas redes sociais, convido vocês a comentar suas opiniões sobre o assunto. Gostaria muito de ouvir cada vez mais gente falando, pensando e, principalmente, ouvido pessoas negras sobre esse tipo de conteúdo. :)


6 comentários sobre o assunto

Fiquei feliz demais por ler esse assunto aqui no blog. Primeiro porque nós somos muito parecidas em nossas opiniões e ideais. Segundo porque é um assunto que eu sempre tive dificuldade de assimilar por completo, e você me ajudou. Quanta humildade e quanta sabedoria, Anna!
Escreveu um ótimo texto sem tirar o local de fala de ninguém!

Um ponto que eu discordei foi o seguinte:
” Aprendi que eu não preciso concordar com todos os argumentos que eu aprendi, mas também não posso julgar. Não é meu lugar de fala e não sou eu que vou tachar de “extremismo” ou dizer que é uma reação exagerada. Não posso fazer isso com um homem que diz que feminismo é extremo demais, então também não posso fazer isso com as mulheres negras. Não tenho como me colocar no lugar do oprimido.”
Homens não são oprimidos por feministas, então creio que essa “comparação” não seja válida. Quando nós, brancas, julgamos as atitudes de mulheres negras, estamos sim, oprimindo-as. Mas quando nós levantamos a voz para um homem que fala que “feminismo é extremo demais”, como se ele tivesse local de fala em uma luta que não é dele, cabe aí a mesma ponderação: “Não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor.”

Beijos com carinho <3

Letícia Portugal

    Oi Letícia! Obrigada pelo comentário e pelo carinho. Você tem razão sobre o ponto que você discorda, acho que eu me expressei errado. Na verdade, queria dizer que homens não podem falar isso de mulheres, e nem as brancas podem falar das pretas. Inclusive, vou corrigir. Obrigada pela observação! :)

    <3

    Anna Terra

MUITO bom o texto todo! Mas no final me questionei. Vc irá ou não continuar usando os turbantes ?

Júlia

    Obrigada, Júlia. Então, desde que comecei a tomar conhecimento das coisas, eu não consegui mais usar. Ainda acredito que isso é radical e que, na minha cabeça de mulher branca, quanto mais pessoas usando, mais as pessoas vão perder o preconceito com o uso. Mas quando eu penso que minha vaidade pode agredir outra mulher, eu não consigo mais usar.

    Anna Terra

Oi Anna. Por coincidência ou não, hoje assisti o GNT Fashion que falava exatamente sobre a cultura afro e fiquei com muita vontade de usar turbante. Eu acho lindíssimas as mulheres negras, principalmente quando estão totalmente envoltas nas cores e força da cultura. Achei um ótimo texto e também concordo que o buraco é mais embaixo quanto à sociedade. As barbaridades estão aí e vão perdurar por muito tempo. Há uma energia forte ainda que precisa ser dissolvida. Mas uma coisa bem importante que acredito não ter sido falada é que só seremos iguais e irmãos frente a todos quando pararmos de pensar divididos e começar a pensar unidos. Emponderar as pessoas que foram e são oprimidas é o caminho para a comunhão. Quanto mais falamos em racismo, feminismo, machismo, e tantos outros rótulos, mais estamos dando poder a eles. Precisamos, sempre, destacar o discurso da irmandade, da ajuda, da cooperação. E isso não vi no seu texto. Todos os tópicos parecem defender a atitude agressiva das mulheres que passaram por você. Na minha opinião ele precisa desse tópico. A espiritualidade é o caminho do amor, o caminho da paz, o caminho de todos. E é disso que ela fala. É para isso que o desenvolvimento humano, a elevação de consciência servem. Abaixo com os rótulos, acima com o amor. Procurando sempre, sempre, sermos melhores para nós mesmos e para todos. Sem agressão, mas com determinação e respeito. Grande abraço.

Simoni

    Obrigada pela contribuição, Simoni. :)

    Anna Terra

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