a liberdade que oprime
Arte: Shiko (Derby Blue)
Qual é o problema de mostrar os peitos? Se os homens podem as mulheres também podem. As mulheres devem mostrar. E porque você não mostra também? Não vai mostrar?! Mas se for mãe tem que mostrar. Tem que amamentar em todo lugar. Quer cobrir com uma fralda? Não pode, tá errado. Claro que o parto vai ser na água, humanizado. O seu relacionamento é aberto, né? Monogamia é uma hipocrisia, todo mundo trai. Selinho não é gaia, e se for amigo também não é, né? Toda mulher fica com outras mulheres, que besteira. Vai dizer que você não tem vontade de um menáge. Voltar da festa antes de terminar? Nem amanheceu ainda. Você nem parece tão bêbada. Fuma maconha mas nunca cheirou pó? Que mentira. Todo mundo fuma. Todo mundo cheira. E daí que é dia de semana? Trabalhar é um saco. Você é escravo do seu chefe. Viciado em trabalho. Só pensa em dinheiro. É de direta. Cadê sua camisa da CBF? Não perde a hora do panelaço. E a dancinha do impeachment? Tudo coxinha. É de esquerda. Tem que ocupar a rua. Cadê o cartaz? Não vi seu textão ainda. Qual é o protesto do dia? Tudo mortadela. Protege os animais? Que mentira, nem compartilhou aquela foto. Sem coração. Não vai resgatar aquele gatinho? Não vai doar pro cachorrinho? Diz que gosta de bicho mas não é vegetariano. Diz que é vegetariano mas as come peixe. Devia andar de bicicleta, seu carro é a culpa do caos. Não sabe da última? Desconectado do mundo. Só vive na internet. Desconectado do mundo. Que mundo? Que mundo é esse.
O mundo onde a liberdade pode oprimir. Sabe quando éramos do crianças e sempre tinha aquele que te chamava de otário porque você não queria tomar uma cerveja? Porque não queria experimentar cigarro? Porque nunca tinha mentido pros seus pais? Porque não queria sair escondido? Mas todo mundo faz. O peso do “todo mundo faz” é enorme. Vivemos uma era de empoderamento linda, majestosa. Mas, como tudo nessa vida, tem o seu reflexo negativo. Um mundo onde as pessoas estão com seu direito de escolha cada vez mais livre, é justamente onde o julgamento vem diante dessa liberdade.
É difícil de explicar o que sinto sobre isso, eu acho. Mas gozando dessa liberdade de escolha em todos os níveis, julgamos e somos julgados o tempo inteiro por quem não faz as mesmas escolhas que a gente. Sinto inclusive uma disputa de quem faz mais, quem faz melhor. Isso não é liberdade. As motivações estão nebulosas, sabe? Algumas vezes não fazemos as coisas pelo nosso propósito, e sim para mostrar que estamos fazendo. Para contar pontos no placar do ativismo daquela causa que resolvemos seguir e ser os melhores nisso. E então começamos a perceber que o julgamento começa no nosso espelho, e transborda por todas as nossas relações.
Vamos aproveitar o tempo de liberdade para sermos, então, livres. Julgar menos os outros. Julgar menos a nós mesmos. Seguir ativistas pelas nossas causas e por aquilo que acreditamos. Seguir defendendo nossos ideais. Seguir respeitando aqueles que não são como nós, e que nem por isso são menos que nós.
Importante, para não haver qualquer mal entendido: machismo, misoginia, homofobia, racismo e todo tipo de preconceito ou violência não é liberdade e não merece ser respeitado. Merece sim ser julgado e exterminado da sociedade.